02/03/2020 16h59

Agricultor faz brotar oásis em meio à seca em Pancas

No cenário quase desértico, após cinco anos consecutivos da maior estiagem já registrada na região, o solo era tão estéril quanto a esperança dos agricultores de Pancas. Castigados pela estiagem, muitos se sentiram obrigados a abandonar a roça. O gado morria de fome e de sede. Os ossos ressequidos dos animais expostos ao tempo eram uma espécie de prova material do prejuízo. O calor fritava, queimava a renda dos agricultores familiares do município.

Na contramão do êxodo rural, a família de seu Juliberto e de dona Nair Stuhr resistiu com bravura. A princípio, foi desacreditada pelos vizinhos. Eles sempre olharam de maneira diferente para a maneira com a qual a família conduz a propriedade: com 64% da área em floresta primária preservada e ações de conservação de fauna e flora no local bancadas com recursos obtidos com a plantação de café e a criação de gado.

Mas o filho Marcos, engenheiro agrônomo, e a filha Patrícia, bióloga, cuidaram de estudar com carinho a situação, e ofereceram solução a todos os agricultores dispostos a enfrentar a seca. Hoje, a família Stuhr é exemplo, e recebeu a visita dos integrantes do projeto Horizontes em Extensão, capitaneado pelo Instituto Capixaba de Pesquisa, Assistência Técnica e Extensão Rural (Incaper).

Com poucas palavras, seu Juliberto relembrou com tristeza os tempos de estiagem. “No auge da seca, não tinha água para nada. O gado estava morrendo de sede, o Rio Panquinhas secou totalmente, o Pancas também, e toda a bacia hidrográfica do Pancas parou de correr”, disse. A solução construída na propriedade que se tornou modelo parece simples: uma barragem pluvial, um açude construído no topo de um morro abastecido apenas pela água da chuva.

Porém, o desafio foi árduo dada as dificuldades impostas pelas características geográficas do município e pela ausência de referência técnica na engenharia para projetar tal empreendimento. Pancas está situado aos pés de uma exuberante formação rochosa, uma barreira natural que limita a recarga de nascentes e cursos hídricos. O desafio de reservar um grande volume de água em um local onde não existia nascente ou rio parecia algo impossível.

 “A matriz pluviométrica existente do escritório do Incaper de Pancas serviu de base para todos os projetos desenvolvidos no município. A base fundamentou os decretos de situação de emergência municipais, sinistros de seguros agrícolas e os projetos de construção de barragens elaborados pelos técnicos da região. Hoje no município são mais de 500 barragens que ajudam a aumentar a disponibilidade hídrica e regular a vazão dos rios”, explicou Marcos Stuhr, filho do casal de agricultores e extensionista do Incaper.

Gráfico 01. Variação Hídrica histórica com linha de tendência definida por média de 10 anos

Fonte: Matriz Pluviométrica de Pancas - INCAPER.

Marcos Stuhr detalhou os estudos que beneficiaram tantos agricultores de Pancas: “O histórico de medições pluviométricas registrado no Incaper serviu de base para a elaboração de uma planilha, a partir da qual conseguimos extrair a média de chuva por períodos e a média geral. Conseguimos tirar dali conclusões importantes, como a queda no volume pluviométrico em determinados meses e o aumento em outros, a ocorrência de ciclos de estiagem recorrentes, além da definição de períodos de risco pluviométrico. Fizemos ainda estudos hidrológicos precisos por localidade. Tudo isso contribuiu para fundamentar muitas ações técnicas, que ajudam não apenas agricultores, mas também setores diversos que necessitam destas informações para dimensionar projetos como bueiros, galerias, pontes, estradas e qualquer estudo que necessite de informações hidrológicas. A matriz apontou ainda a ocorrência recorrente, na última década, de veranico durante o mês de janeiro, momento em que o café apresenta grande demanda por água para granação dos frutos, o que impôs a necessidade de reserva hídrica para irrigação.”

Os cálculos foram ainda mais complexos. “Como podíamos contar apenas com água da chuva, o ponto crucial do projeto era atestar tecnicamente a capacidade de enchimento do reservatório. Além da média de chuva, calculamos a área da bacia de contribuição, fizemos estudo hidrológico da localidade e dimensionamos a estrutura a fim de armazenar o volume máximo de captação daquela microbacia. Na propriedade dos meus pais, a capacidade é de 28 mil metros cúbicos, o que equivale a 28 milhões de litros. E não é só encher a barragem. É recarregar e perenizar as nascentes, além de criar novas. É literalmente produzir água onde não tinha”, afirmou o extensionista do Incaper.

“Quando começou a obra, os operadores de máquina e profissionais envolvidos no serviço brincavam: ‘O engenheiro é doido, onde já se viu, construir uma barragem no topo de um morro, sem rio, seco’. As brincadeiras eram a rotina do trabalho. Eu entrava na brincadeira, mas convicto do resultado, sempre afirmava: ‘A ciência, as técnicas de engenharia que foram desenvolvidas por séculos apontam que dá certo, que vai encher e que vou mudar a condição hidrológica desta microbacia. Sou refém da ciência, estudei anos e tenho que confiar neste conhecimento dominado em meus estudos’”, lembrou Marcos Stuhr. Além do Incaper, a construção da barragem contou com a parceria do Banco do Nordeste.

Quando a comitiva do HorizontES em Extensão esteve na propriedade da família Stuhr, o açude estava vazio. Foi o auge da seca. Mas logo abaixo, vertia um pequeno reservatório com uma nascente, perenizada após a implantação do projeto, coisa que não existia antes. Nos 11 meses anteriores, as chuvas foram escassas na região e a água da barragem havia sido toda usada para irrigar as plantações, dar de beber aos animais e manter a recarga hídrica da microbacia. Apesar da seca, os pastos estavam verdes, o cafezal viçoso e os animais sadios. “Num ciclo normal de chuva, de 1.200 milímetros de média por ano, ela (a barragem) enche. A cheia abastece a propriedade completamente. Se chover acima da média, não rompe porque tem vertedouro para extravasar o excedente. No reservatório, a carga hídrica provoca a recarga no solo e o afloramento da água em uma nascente que tem à jusante. Melhorou toda a estrutura hídrica e perenizou esta nascente. Nós construímos uma nascente”, asseverou Marcos Stuhr.

Atualmente, graças às chuvas registradas recentemente na região, o açude da família está com a capacidade plena. “A nascente agora não seca mais porque no período (de chuva) ela enche, mina para o pasto abaixo e a gente pode ficar tranquilo a respeito do gado”, comemorou dona Nair Stuhr.

Agroindústrias, agroturismo e turismo rural

As dificuldades causadas pela seca e as soluções apresentadas pelo Incaper em parceria com diversas instituições, incrementaram as atividades já desenvolvidas no município e impulsionaram a diversificação. “A capacidade de suporte de cabeças de gado da propriedade aumentou 110,71%, as mortes de animais por doenças reduziram em 83%, a produção de leite registrou um aumento de 292,86% e o faturamento da propriedade cresceu muito significativamente. Uma ação puxa a outra, muda a vida das pessoas e abre portas que elas nunca imaginariam que seriam abertas”, ponderou Marcos Stuhr.

O produtor de leite Franksdélio Vervloet recebeu orientação do Incaper com relação à alimentação do rebanho em períodos de estiagem. “Fiquei sabendo do capim Capiaçu por intermédio do Incaper. Só tinha ouvido falar. Nós fomos até Aracruz com o Marcos, onde o Almir, que também é servidor do Incaper, doou mudas do Capiaçu pra gente. Nós cortamos as mudas com nossas próprias mãos e trouxemos com ajuda da Prefeitura de Pancas. Plantei área até pequena e estou colhendo os frutos dela, cedendo mudas a outros. Só com as minhas mudas, já foram plantados mais de 2 hectares de Capiaçu aqui em Pancas. Hoje o problema é o excesso de comida para o gado”, orgulha-se o produtor.

O incentivo à produção de leite de qualidade faz brotar uma associação e pequenas queijarias, que lutam para se adequarem às exigências da legislação. “Fazer queijo ruim de leite bom é fácil. Fazer queijo bom de leite ruim não existe”, argumentou uma produtora.

A diversificação de renda envolve ainda outras atividades. As imensas formações rochosas que emolduram o município de Pancas são um convite ao turismo de aventura. Escaladas, rapel, trekkings e voos de parapente são alguns dos esportes praticados por visitantes oriundos de várias partes do Espírito Santo, do Brasil e do mundo.

Abrir a porteira da propriedade para a chegada de turistas e visitantes foi uma das ações desenvolvidas pelo agricultor Fábio Eggert para driblar a crise causada pela longa estiagem. O Sítio Cantinho do Céu dispõe de local para acampamento e trilhas guiadas pelo próprio agricultor.

O Projeto HorizontES em Extensão

A experiência da família Stuhr e dos demais agricultores de Pancas serve de inspiração para quem vive em regiões de seca extrema. Não foi à toa que o município foi selecionado para receber a comitiva do Projeto HorizontES em Extensão, que visitou 11 experiências de relevância para o desenvolvimento rural capixaba.

Capitaneado pelo Incaper, o projeto levou representantes da Secretaria da Agricultura, Abastecimento, Aquicultura e Pesca (Seag), das Centrais de Abastecimento do Espírito Santo (Ceasa), do Instituto de Defesa Agropecuária e Florestal do Espírito Santo (Idaf) e da Agência de Desenvolvimento das Micro e Pequenas Empresas e do Empreendedorismo (Aderes) para conhecerem a experiência.

A visita a Pancas contou com a presença do secretário de Estado da Agricultura, Abastecimento, Aquicultura e Pesca, Paulo Foletto. “Aproveitar uma iniciativa positiva, que deu certo, trazer todo mundo para se apropriar deste conhecimento, de como foi desenvolvida aquela experiência, é maravilhoso. Conhecimento só ter serventia quando se compartilha. Quem testemunhou as experiências apresentadas pelo HorizontES em Extensão ou ficou sabendo delas, vai levar e multiplicar esses resultados na região onde está. Parabéns a todos os envolvidos e principalmente aos agricultores que permitem apresentar seus resultados a serviço de toda comunidade rural capixaba”, comentou o secretário.

A coordenadora do HorizontES em Extensão destacou que um dos grandes objetivos do projeto é justamente dar visibilidade às ações que impactam a vida das pessoas. “Percorremos cerca de três mil quilômetros para conhecer, valorizar e apresentar as experiências da agricultura familiar capixaba. São ações muitas vezes consideradas pequenas, mas que podem fazer grande diferença na vida das pessoas. São muitos e bons exemplos que o Espírito Santo traz e é isso que o HorizontES mostra”, pontuou a gerente de Assistência Técnica e Extensão Rural do Incaper e coordenadora do Projeto HorizontES em Extensão, Jaqueline Sanz, ao apresentar o projeto na solenidade de encerramento.

“Estamos firmes graças ao trabalho do produtor rural e da família Incaper. Como é bom andar por aí e ver o tanto de gente fazendo tanta coisa boa no nosso Espírito Santo. O Incaper que queremos para o futuro é um Incaper que oportunize, que seja inclusivo. Essa experiência enriquece o nosso portfólio e ajuda a convencer quem quer que seja sobre a importância de se continuar fazendo extensão de qualidade”, contou o diretor-presidente do Incaper, Antônio Carlos Machado.

O diretor-técnico do Incaper, Nilson Araújo Barbosa, ressaltou as parcerias e a integração entre os trabalhos de pesquisa, assistência técnica e extensão rural desenvolvidos pelo Instituto. “Cada experiência tem um diferencial. Em todas elas, vimos a importância da pesquisa realizada pelo Incaper para os agricultores, que só tiveram acesso a esses resultados científicos graças ao trabalho da extensão. Com o esforço coletivo, temos conseguido mudar a realidade das pessoas em sinergia com todo o sistema agrícola capixaba.”

O projeto HorizontES em Extensão é viabilizado com recursos oriundos de um convênio estabelecido entre o Incaper e o Ministério da Agricultura, Pecuária de Abastecimento (Mapa). A parceria prevê, entre outras metas, a realização de ações no Programa de Aperfeiçoamento em Práticas e Projetos de Desenvolvimento Rural dos Agentes do Incaper.

Texto: Juliana Esteves

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