Dia da Mulher: conheça a história de luta e vitória da servidora Neiriele Marques da Silva
Neste 08 de março, Dia Internacional da Mulher, a Secretaria de Estado de Direitos Humanos destaca o trabalho e a história da servidora Neiriele Marques da Silva. Neiri, como é conhecida, é uma jovem mulher negra, de 30 anos, baiana de Eunápolis, cuja história retrata a realidade, tantas vezes dura, de outras muitas mulheres que ajudam a roda girar dentro do Governo e fora dele.
Neiri representa todas as servidoras que, assim como ela, doam o seu melhor para atender aos cidadãos com dignidade e respeito, fazendo a sua parte para contribuir com um mundo melhor.
E Neiriele é inspiração. Ela inspira superação, garra, determinação e força. Além de muita doçura. Conheça um pouco mais a sua história.
Neiri, primeiro as apresentações formais. Qual a sua idade, sua formação e qual cargo ocupa no Governo do Estado?
Tenho 30 anos, me formei em Serviço Social, pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), em 2013 e atuo desde fevereiro de 2018 como gerente de Políticas da Promoção da Igualdade Racial na Secretaria de Estado de Direitos Humanos (SEDH).
Conta pra gente, como chegou até aqui?
Bom, eu nasci na Bahia, em Eunápolis. Minha mãe era dona de casa e meu pai madeireiro. Vivíamos bem, financeiramente falando. Então ele se mudou sozinho para o Pará e tempos depois eu, com mais ou menos um ano de idade, minha mãe e meu irmão fomos morar com ele. O nome da cidade era Tailândia. Esse nome era por se tratar de uma região muito marcada pela violência, na década de 90. Mas, apesar disso, lá vivíamos bem, tínhamos uma casa boa e não nos faltava nada, materialmente falando. Mas tinha a parte do alcoolismo e da violência doméstica. Quando meus pais bebiam e brigavam, meu pai ficava violento. Eu e meu irmão, desde muito novos, presenciávamos as agressões sofridas pela minha mãe e muitas vezes tínhamos que nos meter no meio para defendê-la.
Um dia então, quando eu estava com nove anos, meu pai conheceu outra mulher e foi embora. Ficamos por nossa conta. Precisamos mudar de casa, fomos morar de aluguel, minha mãe voltou a trabalhar em casas de família, como doméstica, e nessa época passamos por muitas privações, de quase não ter o que comer mesmo.
Por que vieram para o Espírito Santo?
A situação foi só piorando e viemos para o Espírito Santo, onde meus avós moravam e minha mãe conseguiu emprego. Ela alugou um barraco muito precário em Viana e ali vivemos por aproximadamente dois anos. Até que um dia meu pai nos telefonou, disse que estava com saudades e pediu pra gente voltar. Minha mãe, que não estava em condições de optar, voltou com a gente para o Pará. Chegando lá, encontramos uma outra situação. Meu pai vivia sozinho em uma casa grande, num bairro bom, com quintal grande. Isso foi no ano de 2001. Dois dias depois que voltamos para o Pará, ele nos deixou com R$ 14,00 e um frango e foi embora novamente. Só apareceu 18 anos depois.
Foram 18 anos até você ter notícias do seu pai?
Foram 18 anos. Há dois anos, eu estava triste, chorando no colo do meu pai de santo, do terreiro de Candomblé onde frequentava, e disse que estava sentindo muitas saudades do meu pai. O pai de santo me disse então que em breve eu teria notícias dele. E uma semana depois eu recebi uma ligação do meu pai. Ele está bem, é casado e tem filhos. Eu perdoei meu pai e isso me permite viver a vida com a leveza que vivo hoje.
E a vida lá no Pará, depois que ele foi embora?
Bom, meu pai se foi e descobrimos então que a casa onde morávamos estava no nome da mulher do meu pai. Descobrimos também que ele só nos procurou porque flagrou uma traição por parte da mulher e a colocou para fora de casa. Mas a casa estava no nome dela e ela fez de tudo para nos tirar de lá. Minha mãe entrou na Justiça, tentou comprovar que era casada com meu pai, mas não adiantou. Na época, o defensor público que estava no caso em favor da minha mãe disse que a culpa daquela situação ter acontecido era dela, que “não deu conta de segurar o macho em casa”.
Durante meses minha mãe brigou para não sairmos da casa. A polícia batia na nossa porta constantemente, junto com a ex-mulher do meu pai. A gente passava muita vergonha. Até que um dia fomos despejados e fomos morar com um tio que tinha cinco filhos, a sogra, ele e esposa em casa.
Aquele foi um período muito difícil. Eu tinha 11 anos na época e comecei a trabalhar num restaurante de beira de estrada para ajudar em casa. Por conta disso tive de largar os estudos, pois tinha que chegar de manhã e ficava até o fim do dia. Eu gostava muito de estudar, mas não podia ir. Precisava trabalhar para ajudar a minha mãe. No trabalho, sofria assédios dos caminhoneiros que frequentavam o restaurante, mas não podia reclamar, nem responder. A dona, que era minha patroa, dizia para eu não responder ou iria acabar espantando a clientela dela.
O que fizeram a partir daí?
A situação ficou complicada e meu tio não conseguiu mais nos manter na casa dele, então fomos viver com uma tia, na Bahia. Mas só eu e meu irmão, sem a minha mãe, que voltou para o Espírito Santo, onde conseguiu um emprego numa casa de uma família com a qual ela já havia trabalhado antes de se casar com o meu pai. Só que um dia minha mãe ficou doente e eu vim para Vitória ajudar a cuidar dela e precisei, mais uma vez, parar de estudar e fui vender bolo nas ruas.
Depois, comecei a trabalhar como babá e aí pude investir mais tempo nos meus estudos. Eu morava na casa da família onde trabalhava como babá, na Praia do Canto. Foi quando eu quis retomar os estudos e tentei me matricular num colégio estadual próximo, o Maria Horta, que fica no mesmo bairro, mas a diretora da escola não me aceitou, alegando que eu era muito velha pra “escola dela”.
Eu estava defasada em relação aos outros adolescentes, já que havia perdido alguns anos de estudo. Então, fui para outra escola e, como sempre fui aplicada e boa aluna, os professores me incentivaram a fazer provas para passar de série. Assim, consegui diminuir a defasagem. Também concorri a bolsas de estudo para fazer o Ensino Médio e alguns colégios particulares de Vitória me ofereceram bolsa integral. Acabei aceitando a oferta do Colégio Americano Batista, que ficava bem perto de onde eu trabalhava e morava. Lembro-me da diretora dizer que ali eu era igual a qualquer outro aluno, com os mesmos direitos e deveres. Foi importante pra mim essa fala, me senti pertencente àquele lugar. Mesmo com o estranhamento de alguns alunos, como o de uma menina que um dia chegou perto e me perguntou: “Neiri, é verdade que você é empregada doméstica?”, eu disse que sim e ela nunca mais me olhou nos olhos e falou comigo de novo.
Ali aprendi o que era vestibular, coisa que nunca tinha sonhado. O curso de Serviço Social eu escolhi depois de assistir a uma matéria na TV, que mostrava profissionais que estavam à procura dos familiares de idosos que haviam sido abandonados no hospital. Pensei: “eu quero trabalhar fazendo isso, ajudando pessoas”.
Você foi a primeira da sua família a cursar o Ensino Superior? Como a Universidade mudou a sua vida?
Em uma Universidade Pública, sim, fui a primeira. Passar no vestibular e começar a estudar na Ufes foi uma grande virada na minha vida. Na faculdade, parei de trabalhar como babá e comecei a me envolver mais com a Universidade, em projetos de extensão e movimentos sociais. Foi no ambiente acadêmico que conheci os coletivos e me enxerguei como mulher negra e tudo o que isso significa. Durante a faculdade e assim que me formei trabalhei no Núcleo Afro Odomodê da Prefeitura Municipal de Vitória.
Neiri, até aqui sua história é de tirar o fôlego. Qual foi a sua maior dificuldade até hoje?
Tudo que contei não se enquadra na parte mais difícil da minha vida. Pra mim, o momento mais difícil e mais marcante foi quando o meu avô morreu. Minha mãe não suportou o baque e voltou a beber. Mas muito mais do que jamais havia acontecido. Nesta época eu estava morando sozinha, estudava na Ufes, trabalhava em um restaurante e aluguei um lugar pra morar em São Pedro, em Vitória. Eu, com 21 anos, feliz com as minhas conquistas, focada em cuidar da minha vida, e aí vi minha mãe naquela situação. Levei ela para morar comigo e foi um período bem complicado na nossa vida. Então eu tive que pedir ajuda à minha ex-patroa. Eu precisava dessa ajuda para a minha mãe. Ela disse que me ajudaria se eu voltasse a trabalhar na casa dela. Trabalhar como babá já não se encaixava mais na vida que eu estava construindo para mim. Eu gostava do trabalho na Universidade, mesmo ganhando menos da metade.
Mas aceitei, para ajudar a mãe. A minha patroa, que tinha contatos, me indicou onde interná-la gratuitamente para fazer o tratamento de saúde para pessoas com problemas de alcoolismo. Ela ficou internada por dois meses. Foi muito difícil.
Depois desses dois meses de tratamento, minha mãe me disse que ela não queria continuar mais lá. Ela me implorou para eu confiar nela, que ela não queria mais continuar internada e que precisava sair dali. Jurou nunca mais beber novamente.
Fui conversar com o médico sobre a alta dela e ele me disse que a cada 10 pacientes que saíam nas condições que ela queria sair, nove acabavam tendo uma recaída. E que se ela saísse, não teria mais como voltar. Eu disse a ele então que a minha mãe seria essa uma pessoa.
Já se passaram 10 anos desde então e ela nunca mais bebeu. Fico emocionada ao falar disso.
O momento mais difícil foi também um momento de grande vitória, né? Que outras conquistas te marcaram na sua trajetória?
Tendo passado por tudo que passei, com a minha família, posso dizer que ter me formado, comprado o meu apartamento e o meu carro (embora eu não dirija, tenho um carro no meu nome), tudo com o meu dinheiro. Tenho muito orgulho em ter feito as escolhas certas.
E qual é o seu maior sonho?
Pode ser um sonho plural? Eu não tenho um sonho só pra mim. Eu sonho com um mundo mais justo, com oportunidades iguais para todos.
E certamente, você já está fazendo a sua parte para isso né? Parabéns! Você é um exemplo